Bartenders são capazes de fazer um bom café?
Conteúdo produzido por Pedro Foster exclusivamente para o blog do BCB São Paulo.
Bartenders são profissionais bem peculiares. Sente em um balcão e observe as pessoas que estão trabalhando do outro lado: elas reúnem certas características e habilidades difíceis de serem encontradas.
Antes de tudo, são pessoas que possuem uma biblioteca sensorial enorme. Quem trabalha atrás de um bar se expõe dia após dia, ano após ano, a muitos sabores - e precisa prestar atenção a eles! Sejam ingredientes simples ou bebidas de alta complexidade, a memória do bartender busca gravar todos os estímulos possíveis. Aliás, a própria profissão exige esse esforço: em quantos outros lugares você é encorajado a testar combinações inusitadas de sabores, aumentar seu repertório sensorial e melhorar o seu discurso sobre uma experiência em uma taça?
Os bartenders também estão entre as pessoas mais metódicas que eu conheci na vida. São capazes de reproduzir a mesma receita, com uma precisão invejável, dezenas de vezes por semana! Lidam com processos lentos, como a maceração; com reações delicadas, como a clarificação; com equilíbrios sutis na execução de drinks - mesmo sob pressão! Realizam o mesmo mise-en-place todos os dias, executam os mesmos drinks ao longo de meses de vigência de uma carta. Todo bom bartender é um exemplo de consistência.
E bartenders fazem (e bebem) muito café! A cafeína é uma parceira inseparável de quem está atendendo atrás da barra ao longo de muitas horas. O consumo de café é parte do lifestyle do trabalho em bares.
Então por que é tão difícil encontrar bartenders que façam cafés incríveis? Uma pessoa que possui essas três características - consome a bebida, tem repertório sensorial e prazer nele, e consegue ser metódico em seu estudo e preparo - tem tudo na mão para mergulhar no mundo do café e aproveitar muito! Mas os bartenders que conhecem e entendem de café especial (ou café de alta qualidade, como preferir) são a exceção, não a regra.
Não, não é culpa do bartender. Veja que curioso: vivemos num país em que muita gente se diz apaixonada por café, mas que não entende quase nada sobre ele. Nos acostumamos a comprar o pó de café pela marca que a nossa família bebe há anos, e não pelo que está dentro do pacote.
Para piorar, estamos imersos em uma cultura de que consumir produtos com um pouco mais de qualidade a mais é luxo. É desnecessário, até motivo de piada. Parece que beber um café melhor está muito distante da realidade de quem trabalha num bar e não recebe um salário lá muito bom. E a própria atmosfera elitista de muitas cafeterias e marcas especializadas não ajuda nem um pouco a dissipar essa impressão.
E convenhamos: fazer café em casa é muito fácil! Com uma panela de água quente, um filtro de papel ou de pano e um pó de café, temos a bebida pronta em minutos. É tão fácil que raramente pensamos sobre aquele pó de café que está entrando no filtro. Fazer café vira um ato automático.
Mas não desanime! O café de qualidade pode ser um prazer acessível, e que vai te fazer evoluir muito como bartender. Hoje quero te dar quatro razões para entrar nesse mundo e explorar todos os sabores que o café pode te oferecer!
1. Moramos no Brasil - e isso é incrível!
Sabe quando você estuda sobre vinhos, e as descrições das vinícolas no Chile ou na França são apaixonantes? Ou quando você lê sobre cervejas, e beber cervejas feitas com lúpulos frescos na Alemanha parece ser uma experiência surreal? Para o café, esse país é o Brasil!
Somos não só o maior produtor do mundo (fazemos aproximadamente um terço de todo o café que é bebido), mas um país de tamanho continental que abriga 32 regiões produtoras. Imagine quantos sabores podem surgir da interação de diferentes espécies e variedades de café com os relevos, solos, climas e métodos de processamento e fermentação que existem no nosso país! Temos lavouras plantadas em montanhas e em cerrados; cafés arábica e cafés canéfora; produções no semi-árido capixaba e no terroir amazônico, super úmido.
Tamanha é a variabilidade que em um dos kits que montamos na Fuzz (a minha torrefação) conseguimos reunir 8 sensoriais completamente diferentes entre si, trabalhando só com os cafés de 3 famílias produtoras.
Quando começamos a beber cafés melhores e aprendemos a provar os sabores para além da marca nos pacotinhos, nos damos conta que cada lote de café tem características muito próprias. E elas refletem a personalidade de quem o produziu! O café é um produto feito e pensado por humanos. E estar tão perto das fazendas nos permite provar cafés experimentais, microlotes, cafés ousados, cafés confortáveis… é uma proximidade que gringo nenhum consegue acessar!
2. Café é complexo. Muuuuito complexo.
Pode parecer que estou puxando sardinha para o meu lado, mas o café é o ingrediente mais complexo que eu já conheci. Estudo café há 7 anos, e ele ainda não se cansou de me surpreender! Estamos vivendo um momento de intenso desenvolvimento de tecnologias de fermentação de cafés nas fazendas, e provando sabores que provavelmente nunca tinham sido vistos em café nenhum no mundo. A cada safra a qualidade global dos cafés sobe, e os concursos de qualidade vão ficando cada vez mais acirrados.
Uma vez que começamos a ter cafés com complexidade absurda nas mãos, aqui no Brasil, só nos últimos vinte anos, estamos ainda arranhando a superfície do conhecimento da extração desses sabores. Imagine que você sempre fez sua bebida passando água fervendo sobre o pó de café moído fino e um filtro de papel. Mas podemos fazer extrações com água gelada, ou até com uma base alcoólica! Podemos brincar com o método de preparo, com a temperatura da água, com a pressão, com o tempo de extração, com o material filtrante, com diferentes perfis de torra… cada mudança de variáveis vai extrair compostos diferentes dos grãos, e resultar numa bebida completamente diferente!
Se você acha que um bartender não tem o que explorar aqui, eu desisto de te convencer agora mesmo. Pensa em quantos experimentos ainda nem foram sonhados com o café - uma semente que possui óleos aromáticos, açúcares, cafeína, ácidos clorogênicos, compostos provenientes da torra, etc. Você pode produzir uma extração com um recorte de sabores que nunca foi provado antes!
3. Nunca tivemos tanta informação disponível sobre café
Quando eu conheci café de qualidade e me apaixonei por ele, a internet era um deserto de informações. Os poucos livros disponíveis eram caros, e a grande maioria dos materiais eram em inglês e pirateados. Você queria se aprofundar um pouquinho? Tinha que pagar um curso - e não era barato.
Mas hoje? Em cada rede social você consegue encontrar dezenas de criadores de conteúdo falando sobre café! Perfis de baristas, de cafeterias, de torrefações, das próprias fazendas… O YouTube possui legendas automáticas, os directs e caixinhas de perguntas do Instagram estão sempre abertos, e entregar informação se tornou a moeda corrente do marketing. Aproveite!
Claro que, com tanta facilidade de produção de conteúdo, precisamos saber separar o joio do trigo. Nem toda informação vai ser de qualidade, e a primeira regra é desconfiar de tudo que te falam (inclusive desse meu texto!). Mas o tanto que você pode aprender interagindo com esses canais e perfis e comprando cafés diferentes por e-commerces é um sonho! Nunca foi tão fácil (e gostoso) aprender sobre café.
4. Treinar o seu sensorial com café te melhora como bartender
O café possui uma dificuldade extra em relação aos outros ingredientes do bar: ele é muito sutil. Enquanto uma vodka de pêra vai ser uma explosão dessa fruta na sua boca, um café com nota sensorial de pêra frequentemente vai apresentar muitas nuances frutadas, acidez cítrica e málica, uma doçura característica, e todas as camadas sensoriais se sobrepondo - sem uma intensidade artificial que facilite a sua identificação. Lembra que ele é muito complexo? Embora a nitidez de um sabor seja um atributo que buscamos, o café sempre vai te entregar muita informação.
Isso te obriga a prestar muita atenção quando estiver bebendo uma xícara de café, para conseguir distinguir o que você está sentindo. A sutileza treina a sua língua, o seu nariz e o seu cérebro para serem mais sensíveis e mais assertivos. Alguém bem treinado com café percebe um mundo inteiro quando prova um destilado ou uma bebida composta.
E com todas essas camadas sensoriais, o café te presenteia com diversas oportunidades de combinação de sabores! O café tradicional só pode entrar em um coquetel como um elemento tostado e amargo, que pode fazer espuma quando batido e gera diluição, quando é filtrado. Algo completamente plano. Mas cafés de alta qualidade podem se conectar aos mais diversos ingredientes! Seja através da sua acidez, de aromas frutados, ou de sabores condimentados; pode ser por conta de uma doçura de rapadura, ou um aroma floral particular, ou até mesmo por mostrar um amadeirado doce de muita qualidade.
Quer entender o quão inesperadas podem ser as combinações possíveis? Existe um campeonato de coquetéis alcoólicos com café chamado Coffee in Good Spirits. Procure no YouTube as apresentações, e veja como são incríveis as receitas pensadas pelos competidores. Na minha apresentação da última edição, preparei um drink quente com um gin extremamente floral, uma vodka saborizada com pêra, vermute seco, purê de yuzu, orgeat - e café! Imagine o quão complexo meu café teve que ser, para amarrar todos esses ingredientes e se destacar na receita. É um universo de possibilidades que se abre.
Eu fico muito entusiasmado por você, bartender, ter chegado até aqui nesse texto. Estamos vivendo um momento único na história da produção e do consumo de café no Brasil. Quero te convidar para participar dessa grande onda também!
Ver as inovações do mundo do café sendo usadas na coquetelaria me motiva demais. Não só como competidor, mas como player do mercado que trabalha para que mais pessoas possam acessar e beber café de qualidade - especialmente as que podem pagar menos. Um drink pode ser a ponte que vai conectar o mundo do café ao universo dos seus clientes. Não deixe de contar essa história.
E mesmo que não queira entrar nessa toca do coelho, se arrisque pelo menos uma vez com café. Dê uma chance a ele. Eu gostaria muito que você pudesse provar, na prática, essas sensações complexas que um bom café pode te causar, e o quão assustadora pode ser a diferença de sabores entre duas extrações diferentes feitas com grãos do mesmo pacote. Deixe ele te surpreender, como fez comigo há anos atrás - e mudou toda a minha vida.
Fazer um café incrível não te torna menos bartender. Te torna um(a) bartender melhor.
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Meu nome é Pedro Foster, e sou um dos sócios da Fuzz Cafés - uma torrefação de cafés especiais no Rio de Janeiro.
Estudo sabores em bebidas desde 2011, quando me apaixonei por cerveja artesanal. Como não tinha dinheiro para beber, meu jeito de estar em contato com ela era lendo material técnico. Em 2015 conheci o café de alta qualidade, e me apaixonei de vez. Larguei meu doutorado em física pouco tempo depois, para poder trabalhar em tempo integral em uma cafeteria; assim eu estaria lidando com café todos os dias e teria matéria-prima na mão para poder estudar.
Minha vida na coquetelaria começou em 2018, quando montei um pequeno bar dentro dessa cafeteria. Eu comprava as garrafas que queria conhecer, criava drinks com técnicas que queria praticar, e a venda dessas bebidas pagava minhas contas e financiava meus estudos. Essa operação durou até o lockdown de 2020, quando a cafeteria fechou, e abri a Fuzz com meu irmão.
Começamos a torrar cafés com a Fuzz na intenção de vender café de alta qualidade para quem não podia pagar os preços de mercado de luxo que são praticados no mundo do café especial. E hoje em dia buscamos oferecer experiências sensoriais e cafés com sabores diversos - arábicas, conilons e robustas. Queremos que pessoas com os mais diferentes paladares possam se divertir conhecendo sabores, e encontrem um café que gostem de beber e que seja saudável. Para nós, café é um espetáculo - e queremos mostrar isso para o mundo!
Quer continuar a conversa sobre cafés especiais e coquetelaria? Procura a Fuzz no Instagram! A DM e as caixinhas de pergunta estão sempre abertas. @fuzzcafes
Conteúdo produzido por Pedro Foster exclusivamente para o blog do BCB São Paulo.