Quem bebe é o cérebro - O Enigma do sabor
Por João Morandi
Créditos de imagem: Arquivo pessoal João Morandi
É ainda bastante incomum que um bartender pense em agradar cérebros ao idealizar ou reproduzir um cocktail. O primeiro pensamento que surge ao criar ou preparar a bebida é direcionado ao paladar. Pensamos: será que estes sabores serão apreciados?
Essa pergunta move muitos profissionais da gastronomia (coquetelaria inclusa) a adicionar ou suprimir ingredientes em suas receitas. O foco costuma ser todo no gosto. Mas sabia que o sabor é uma conjunção de diversas sensações percebidas pelo corpo humano?
Existe uma ciência própria especialmente dedicada a estudar essa questão, a Neurogastronomia. É uma ciência bastante nova que tem por estudo ontológico a maneira "[...] como o cérebro cria sabores e porque isso é importante".
As aspas na explicação simples e objetiva se devem ao fato de esta definição figurar no título do importante livro do cientista Gordon M. Shepherd. Em seu livro 'Neurogastronomy: how the brain creates flavor and why it matters', o neurocientista embarca em uma viagem de mudança de paradigma através do sistema de sabores do cérebro humano.
Será que precisamos mesmo estudar neurociência para fazer cocktails?
Não!
É muito legal entender como nosso cérebro entende os sabores?
Sim! Além de nos ajudar a prestar mais atenção em aspectos relevantes na hora de construir uma bebida.
Estes estudos podem, inclusive, nos auxiliar no entendimento de porque a tão falada hospitalidade é importante para o sucesso de um bar, já que, segundo o próprio Shepherd, sabores interagem diretamente com regiões do cérebro que controlam emoções. Portanto, me parece razoável inferir que um ambiente agradável com acolhimento, atenção e gentileza podem atuar de maneira importante nos sabores que sentimos (e que nosso cérebro decifra). Mas isso é assunto para outro texto.
Partindo para algo mais prático, com dicas boas para a sua elaboração etílica, fica claro que precisamos observar as propriedades organolépticas dos ingredientes.
Organo quem? ORGANOLÉPTICAS. São as propriedades dos alimentos que impressionam os sentidos humanos: visão, olfato, paladar, tato e audição.
Portanto, cor, aroma, sabor, textura e até o som podem interferir na sensação de uma pessoa ao tomar um cocktail. Vamos um a um.
COR
Sabe o que os cocktails Tiki e o famigerado Moscow Mule possuem em comum (isso não é o começo de uma piada, apesar de parecer)? A resposta é: uma cor nada apetitosa.
Veja bem, vários cocktails tiki, por terem em suas receitas muitos runs envelhecidos, xaropes, sucos e licores, acabam por não entregar nestas misturas uma coloração agradável.
A mulinha de Moscou também. Feita com vodka, refrigerante de gengibre e suco de limão, tem como resultado final aquela cor bege, meio pálida.
A solução vem a galope (com o perdão da piadinha ruim). Para que estas cores não atrapalhem sensorialmente é só colocar em copos e taças que escondem a cor dos líquidos. De quebra, alguns destes copos chamam a atenção por seus tons coloridos e formatos exuberantes, e outros até pelo brilho do metal.
Estes exemplos são extremos, mas são bons. Nos mostram como é importante escolher bem os recipientes e "decorações" dos cocktails, e ser criativo na hora de servir uma bebida. Pensar na cor e nos "adornos" que vão estimular a visão é bastante importante, assim como lançar mão de ingredientes que agregam tanto no sabor quanto na coloração.
Outro aspecto importante ligado à visão é a secreção de Mucinas Salivares na nossa boca. Alimentos e bebidas visualmente saborosos estimulam o cérebro a disparar a produção dessa substância que é proteica e altamente glicosada. A mucina possui a capacidade de formar géis, e por isso é a responsável pela espessura da nossa saliva. Sua ação lubrificante facilita o deslizamento da bebida e da comida na cavidade bucal, "encorpando" a textura do que está sendo consumido e intensificando a "sensação de boca" (mouthfeel). Isso complementa a sensação do cocktail na boca, tornando-o mais apetitoso.
AROMA
Aquele monte de penduricalho em cima dos cocktails às vezes atrapalham nosso acesso ao líquido dos copos. Mas os garnishes (ou em portugês a guarnição) tem função importante que é a de adicionar nuances aromáticas. Por isso esprememos as cascas dos cítricos ou colocamos gotas de bitter por cima das bebidas. Este é mais um elemento para seu cérebro usar no quebra cabeça que ele vai montar na sua experiência gustativa.
Aromas também são gatilhos emocionais costumazes. Através deles podemos acessar memórias afetivas de momentos diferentes da vida da pessoa, pois a conexão de aromas e sabores é muito forte. Isso acontece pois nariz e boca estão conectados anatomicamente pela nasofaringe e orofaringe, e essa conexão cria confusões do que é cheiro e do que é gosto (apesar de sabermos que são duas coisas diferentes).
SABOR
Essa palavra é muitas vezes confundida com o gosto. É normal. O senso comum, muitas vezes, junta os dois na mesma definição. Mas já que estamos discutindo a formação complexa do sabor através da junção de vários elementos pelo nosso cérebro, fica claro que este tópico se refere ao gosto: aquilo que nossa boca sente através de receptores gustativos que detectam se o alimento está SALGADO, DOCE, AZEDO ou AMARGO.
Perceba que, apesar de alguns gostos interferirem na sensação um do outro, eles não se anulam, e um alimento pode ter dois ou mais gostos juntos. É o caso do agridoce (doce e azedo) e do salgado e doce - presente em pés de moleque, caramelos salgados, saladas de vegetais com maçã e também do querido arroz com uvas-passas (não vou começar essa discussão).
De fato a utilização de dois ou mais gostos juntos é benéfica para a construção do sabor quando em quantidades pequenas e equilibradas, pois um gosto serve de parâmetro para o outro. Nosso cérebro consegue intensificar um sabor ao ter pontos antagônicos juntos na mesma comida ou bebida.
Existe ainda um quinto gosto que é o UMAMI. Traduzido do idioma japonês como algo "saboroso, delicioso". Ele realça os demais sabores quando presente nos alimentos e bebidas. Ativado pela substância Glutamato Monossódico, o umami está presente naturalmente em diversos alimentos como molho de soja, tomate, milho e cogumelos.
Vale dizer que existe também um sexto gosto, o Oleogustus. Ainda menos estudado que os demais, foi demonstrado como o verdadeiro gosto da gordura (alimentos ricos em lipídeos). É o gosto da untuosidade lipídica.
TEXTURA
Quando falamos do tato a imagem que vem logo à cabeça é da utilização das mãos. De fato esta é uma parte do corpo que possui terminações nervosas que percebem a pressão, mas no nosso caso o importante é que nossa boca está repleta destas terminações nervosas também. Por isso sentimos a crocância dos alimentos, a temperatura do que ingerimos e até mesmo a dor.
Na coquetelaria é importante prezar por ingredientes que adicionem boas texturas ao resultado final de uma bebida. Neste momento entram em cena as técnicas que transformam algumas especiarias (além de outros ingredientes) em xaropes, licores, cordiais, sucos, bitters,infusões, tinturas, perfumes…
Imagina um cocktail cheio de pó de canela. É quase uma serragem dentro do copo. Não fica uma sensação boa.
Algumas técnicas, inclusive, dão conta de retirar partes sólidas de sucos de frutas e cocktails já prontos para que a textura fique ainda mais "lisa" no resultado final. Para isso são utilizadas enzimas como a pectinase ou clarificação com leite (milk punch). Nesse último caso o cocktail é acrescido de leite e algum ingrediente ácido que talha e aglutina partículas sólidas. Após coar, o resultado é uma bebida clarificada e de textura mais macia.
Há também ingredientes que deixam a textura da bebida mais cremosa, sem necessariamente parecerem sorvetes ou smooths. Tudo depende de quantidade e proporção. São frutas com estruturas mais "carnudas" e ingredientes cremosos como o creme de leite, ingredientes lácteos à base de vegetais e licores cremosos.
A textura também é responsável pela "crocância líquida", uma maneira metafórica de explicar a função da gaseificação em alguns cocktails. As bolinhas de gás presentes nesses ingredientes estimulam receptores táteis e criam uma sensação prazerosa. Por isso evite servi-los de maneira brusca. A instabilidade do gás nos líquidos é grande e nós não queremos que ele se desprenda. Evite também verter pelo cabo helicoidal da colher bailarina. O metal, apesar de parecer liso a olho nu, possui uma "topografia" acidentada e cheia de irregularidades. Estas reentrâncias criam pontos de nucleação, que são pontos focais que aceleram o desprendimento do gás dissolvido no líquido. Por isso, servir tranquilamente sobre gelo é a melhor opção para não perder essa "crocância" preciosa.
Falando em dor, que tipo de pessoa pensa em estimular a dor ao fazer um cocktail? A resposta é: todo mundo que usa bebidas alcoólicas nas receitas ou também quem utiliza ingredientes como pimentas, gengibre, menta, hortelã…
A sensação de PICÂNCIA é uma sensação de dor percebida por nervos chamados trigeminais, presentes na nossa cavidade bucal (e em outras mucosas também). Então quem utiliza estes ingredientes está buscando estimular estes nervos para que o cérebro junte mais informação lá no enigma do sabor, conscientemente ou inconscientemente.
AUDIÇÃO
Vai dizer agora que a gente ouve sabor?
Sim e não.
Ninguém tenta engolir com as orelhas (pelo menos não deveria), mas a audição possui interação com os demais sentidos e nos ajuda, sim, a perceber o sabor.
Este fenômeno é conhecido como Associação de Cruzamento Modal (Cross-Modal Association) e ocorre com os demais sentidos também. Eles se misturam e complementam para formação de sabor no cérebro.
Já associou uma cor a uma temperatura? E um aroma a um local ou acontecimento específico da sua vida?
Já sentiu uma angústia grande quando ouviu o som do seu despertador como toque do telefone de alguém? Pois é, é por aí a explicação. Os sentidos se complementam e se intensificam.
A audição não consegue criar percepção de gosto, mas ela pode intensificar os sabores, se associar a memórias afetivas e a emoções que interferem no sabor. Ao ouvir a crocância de uma batata chips ou associar música com felicidade, envolvemos o sentido auditivo na tarefa cerebral de formar uma opinião gustativa.
No fim das contas o sabor é isso. Uma opinião. Uma percepção bem individual da soma de diversos sentidos e experiências prévias que tivemos na vida.
Na coquetelaria, podemos acessar essas emoções das pessoas através destes estímulos. Por isso, quando bem pensados e equilibrados, os cocktails trazem na sua complexidade um número enorme de estímulos para que cada cérebro capture e monte a experiência mais adequada. O grande desafio, talvez, seja montar combinações que consigam impressionar os sentidos de pessoas com opiniões, vivências, sentidos e percepções tão diferentes.