Consumo consciente: “bebida para alimentar a alma, não envenenar o corpo”
Sabe aquela famosa “saideira”, que o pessoal costumava pedir para fechar a balada com uma última rodada de copos e garrafas? A notícia é que este comportamento está mudando. Cada vez mais os consumidores estão dispostos a beber de um jeito mais responsável, sem exageros, optando por drinques com baixo teor alcóolico ou diminuindo a quantidade de doses, o que pode transformar o mercado de bebidas.
Iniciativas das marcas, como programas de educação e ações de marketing, algumas com celebridades, além das atuações de entidades e estabelecimentos também têm reforçado a importância do Beba com moderação. Exemplo, a campanha #VidaComEquilíbrio, lançada em agosto, com realização da Associação Brasileira de Bebidas (Abrabe) e apoio da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), Associação Brasileira de Cerveja Artesanal (Abracerva), Associação Brasileira de Exportadores e Importadores de Alimentos e Bebidas (BFBA), o Instituto Brasileiro de Cachaça (Ibrac), a União Brasileira de Vitinicultura (Uvibra) e Sindicato Nacional da Cerveja (Sindcerv), faz um alerta para a importância de beber com responsabilidade.
Em termos de mercado, o movimento abre espaço para novas possibilidades e experiências de coquetelaria, que vão além dos sucos e refrigerantes, trazendo maior variedade de produtos, criatividade e riqueza de sabores para atendimento dos mais diversos públicos. Fato é que bares especializados em bebidas zero álcool são comuns em países da Europa e nos Estados Unidos, enquanto por aqui, cresce o número de receitas nas casas e restaurantes.
Para falar sobre esta nova relação, o BCB conversou com o bartender e consultor Diogo Sevilio, que desenvolve iniciativas educacionais com este foco há três anos. O engajamento do profissional surgiu a partir de experiências pessoais e de superação envolvendo o álcool. Criador da ação “Um drinque a menos”, no Festival Marginália, o especialista em coquetéis é jurado de eventos envolvendo drinques sem álcool. Confira o bate-papo:
BCB – Diogo, você desenvolve algumas ações de consumo consciente há três anos. Como você avalia a recepção do público sobre o assunto?
Diogo Sevilio (DS) – A recepção das pessoas sobre consumo consciente é sempre muito boa e elas reconhecem a importância disso. Já a indústria, cada vez mais entende a relevância do tema. Enfim, a galera sabe que precisa falar a respeito e percebo que, muitas vezes, o engajamento só não é maior porque ainda falta um esforço de todos os envolvidos na área para que o tema seja debatido com mais frequência.
BCB – Geralmente, qual público parece mais disposto a fazer o consumo responsável de bebidas alcoólicas?
DS – O público, no geral, está disposto, mas não encontra formas e nem incentivo para isso. Quantas vezes já vimos alguém dizer que quer ‘dar uma maneirada’, e, pouco tempo depois, essa mesma pessoa está bebendo, nem sempre por compulsão, mas por não encontrar opção ou para estar em meio aos amigos?
Quando existem opções no mercado que inserem a pessoa no contexto recreativo, social, com algum drinque sem álcool, elas proporcionam uma experiência de coquetelaria, que não é água ou refrigerante. É importante a pessoa perceber que está com os amigos, se divertindo e tem uma receita (coquetel/drinque) que combina com seu gosto. A maior parte das pessoas está interessada nisso.
BCB – Como chefe de bar e consultor, em que momento você percebeu que poderia contribuir para difundir “consumo responsável”?
DS – Eu sempre tive uma linha de trabalho provocativa. Sou apaixonado por promover mudanças e encantado pela subversão. Não consigo trabalhar se minha atividade não tiver algum significado. Muita gente acha que o trabalho de mixologista é misturar. Eu acredito que é transformar.
BCB – Como tem sido o desafio de conciliar sua atuação profissional, criar drinques, participar de degustações e ao mesmo tempo estar engajado na difusão do consumo consciente?
DS – Não vejo como funções opostas conciliar minha atuação profissional na criação de drinques, participar de degustação e, ao mesmo tempo, estar engajado com a difusão do consumo consciente. A bebida serve para alimentar a alma e não envenenar o corpo. Eu parei de beber para lidar com alcoolismo e dependência química.
Sobre a conciliação, faço isso de forma consciente, porque eu estabeleci qual é o meu limite com o álcool, que é bem baixo. É apenas provar uma coisinha aqui, outra ali. Eu estabeleci um limite. O importante é que as pessoas tenham limites que não machuquem seus corpos, suas relações, o trabalho e a vida pessoal e amorosa.
BCB – Como funciona a campanha “Um drinque a menos”? Quais ações você tem desenvolvido/participado atualmente?
DS – A campanha “Um drinque a menos” foi criada dentro da Festa Marginália, evento que eu promovo dentro de boteco com drinques a R$ 12. E eu sabia que esse preço baixo poderia incentivar o consumo excessivo.
Para evitar isso, criei alguns dispositivos de controle, como pausas de 30 minutos no serviço de álcool, estímulo à alimentação e ao consumo de água. Essa pausa faz muita diferença.
Nesta esteira, surgiu “Um drinque a menos”, movimento de incentivo ao consumo consciente pela solidariedade, em que convidamos as pessoas a não consumir a última ficha comprada no bar. A ideia é: o consumidor abre mão da saideira e, eu, do dinheiro. Ou seja, o cliente pagou R$ 12 no drinque e resolveu não tomar, essa ficha vai para a caixa de doação. Em média, 10% dos drinques vendidos são devolvidos e os valores doados.
No caso da Marginália, doamos para a Casa 1, centro de acolhimento da população LGBTQIA+ em situação de rua ou qualquer outra situação de vulnerabilidade social, por isso, “Marginália”. Entendemos que é a população que está mais à margem, dentro da escala “hierárquica social”. Geralmente está na rua porque não consegue ter um lar e o apoio da família. Está exposta à violência, consumo de drogas e ao alcoolismo. A ideia é, na medida que essa campanha seja disseminada (para outros locais), as pessoas doem para quem acharem necessário.
Esta é uma ação que pode ser promovida em todos os bares do Brasil, em todas as festas, por todas as indústrias. É essa força que eu vou tentar imprimir a partir do ano que vem, ou a partir do retorno da Marginália, em que voltaremos a promover a ideia do “Um Drinque a menos” e tentar estimular em outras frentes também.
O importante é que o consumidor transforme o último drinque em ajuda e acolhimento. Afinal, nosso trabalho é acolhimento.
BSB – Como profissional de bar, como você vê o espaço da coquetelaria para as bebidas sem álcool? O movimento deve ganhar cada vez mais espaço nos cardápios/cartas?
DS – Estou montando um cardápio para um grande hotel de São Paulo com 12 receitas, sendo oito sem álcool. Já vemos uma necessidade, um exemplo de como o mercado está atento a isso, como a demanda existe. A gente só não estava olhando nesta direção. O movimento vai crescer cada vez mais, a gente já sabe de bares na Europa que são só de coquetelaria com drinques sem teor alcoólico. A indústria de bebidas já vem investindo em destilados sem álcool. Então esse movimento está vindo com força.
BCB – Em termos de criação, você tem desenvolvido mais receitas com bebidas sem álcool nos últimos anos?
DS – Desde o começo de 2021, tenho desenvolvido muitas receitas de drinques sem álcool. Ainda não chegam perto da quantidade daquelas com bebidas alcóolicas, mas o crescimento é exponencial e não vai parar. A gente precisa estimular o movimento e fazer acontecer. A oferta gera procura. Se as pessoas passam a ter opções de escolha, não ficam apenas no refrigerante ou suco de laranja. Por outro lado, se o profissional prepara algo consistente, que não se trata só de uma mistura de frutas batidas no liquidificador e traz técnicas de coquetelaria e complexidade para as receitas, as pessoas vão consumir. Então vamos fazer!